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19 de Abril de 2024

O Abandono afetivo parental no foco das ações de família

Como buscar ajuda em situação de abandono

há 6 anos

A TRAIÇÃO DO DEVER DE PRESTAR APOIO MORAL


Relações de afetividade não são focos para tema agradável de desenvolver, especialmente se nos extremos dessas relações estiverem pai e filho, em meio a um mar de omissões, descaso e irrefutável desprezo.

O assunto é delicado por envolver não somente direitos e deveres, mas questões morais e éticas que habitam (ou deveriam habitar) o consciente e o inconsciente de cada ser humano, sem que, para isto, haja necessidade de provocação da parte sucumbente, qual seja, a prole.

Os pais têm o dever de sustento, cuidado e zelo da prole, mas, não obstante a previsão de deveres objetivos e subjetivos (CF, art. 227, caput), verídico é que muitos lares são compostos de famílias monoparentais. Tal situação atrai um dever de provimento das mais básicas necessidades de crianças e adolescentes, muitas vezes, suportadas por apenas um dos pais.

Sem considerar a questão do apoio material, até porque não se discute o aspecto financeiro em situações de abandono afetivo, sabe-se que com a instituição do divórcio, em 1976, muitos ex-casais adotaram o entendimento de que a ruptura familiar ensejava também o rompimento dos laços com a prole, o que era corroborado pelo instituto da guarda exclusiva, em que o parente dela desprovido ignorava o fato de um dia ter gerado um filho.

Ainda hoje é assim. Pais que decidem pôr termo ao relacionamento afetivo acabam por estender essa decisão aos filhos, acarretando-lhes incontestável trauma pelo abandono.

Ser criado sem pai nem sempre representa um trauma, especialmente no contexto da necessidade material. O cerne da questão é o (a) filho (a) ter consciência de que o pai está vivo e exerce a rejeição por livre escolha, muitas vezes, de maneira vil e ardilosa.

Haveria, no Brasil, uma tendência em se admitir ações de reparação de dano moral quando o pai abandona afetivamente o filho, deixando impresso em seu caráter a mácula do desprezo, não fosse o Superior Tribunal de Justiça ter proferido decisão refutando o cabimento de responsabilidade civil na espécie.

O abandono afetivo é tão prejudicial quanto o abandono material. Ou mais. A carência material pode ser superada com a dedicação do (a) genitor (a) ao trabalho; a de afeto não, porquanto corrói princípios morais se estes não estão consolidados na personalidade da criança ou adolescente.

É o afeto que delineia o caráter da pessoa. Aliás, a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (CF, art. 226, caput), por ser notório que a desestruturação familiar conduz ao desequilíbrio social e, por conseguinte, à criminalidade.

Todavia, não estão os pais obrigados a manter um relacionamento afetivo contra sua vontade. De fundamental importância é que mantenham o vínculo com a prole, sob pena de o ser em formação sofrer prejuízos irreparáveis do ponto de vista psicológico. Muitas doenças físicas têm sua gênese nas “fugas” da criança ou adolescente em não se “re-conhecer” como pessoa, tamanho o abalo em sua auto-estima.

A Psicologia explica que um homem ou uma mulher que cresceu longe da presença do pai do pai tentará encontrar amparo psicológico em pessoas com o mesmo perfil daquele. Não se trata, porém, de regra geral.

Recorrendo à metáfora da folha de papel, o ser humano é como tal, de um lado, o plano físico-orgânico; de outro lado, o plano psicológico, ou seja, óticas conexas de um mesmo ente, tanto que se houver a perfuração de um lado do papel – entenda-se, perturbação psicológica –, prontamente o outro também será afetado, uma vez que constituem partes de um todo. Demonstra-se, com isso, que a vida é composta de uma díade e, portanto, não pode ser compartida sob pena de se perder o humano em sua integração pessoal.

Sobre o tema, afirma ANGELUCI[1] de maneira precisa:

A defesa da relevância do afeto, do valor do amor, torna-se muito importante não somente para a vida social. Mas a compreensão desse valor, nas relações do Direito de Família, leva à conclusão de que o envolvimento familiar, não pode ser pautado e observado apenas do ponto de vista patrimonial-individualista. Há necessidade da ruptura dos paradigmas até então existentes, para se poder proclamar sob a égide jurídica que o afeto representa elemento de relevo e deve ser considerado para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.

O comportamento humano não é resultado apenas dos traços da personalidade, mas construído ao longo da vida do ser por força do contato com outras pessoas e da aquisição de conhecimento, seja teórico ou empírico.

O trauma decorrente do abandono afetivo parental imprime uma marca indelével no comportamento da criança ou adolescente. É a espera por alguém que nunca vem ou telefona para ao menos cumprimentar pelo aniversário; a comemoração do Dia das Mães ou dos Pais sem a presença destes; a ausência por anos a fio, enfim, a mais absoluta indiferença.

Inúmeras são as formas de abandono moral e afetivo já existentes. Certo, contudo, que novas modalidades serão criadas por quem cultiva a vingança pela falta de perspectivas na vida pessoal e é desprovido do senso de responsabilidade, dando origem a uma geração cujo desenvolvimento é orientado apenas por um dos genitores, ignorando o outro a existência do próprio filho.

De fato, a atitude impensada e desmedida de certos pais acaba por criar uma barreira que impede o combate às mazelas do ser humano por uma espécie de defesa anti-social. Essas feridas não cicatrizam e, muitas vezes, alimentam uma personalidade autopiedosa, originada da destruição da auto-estima, sem o que não se pode falar numa convivência sadia do indivíduo com os demais.

Auto-estima é o revestimento do caráter, assim como a pele é o revestimento do corpo.

Considerando os prejuízos que atitudes dessa envergadura provocam na construção da personalidade do menor, tribunais vêm decidindo pela responsabilização do genitor que deu causa ao abandono do filho. É evidente que não se pode obrigar o pai a ter uma convivência afetiva com o filho, daí a determinação de pagamento de indenização pelo dano causado à auto-estima da criança ou adolescente, não como forma de minimizar o trauma sofrido, mas sim para gerar no genitor faltante a consciência de um dever maculado.

O extinto Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais assim se manifestou sobre a questão:

A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável com fulcro no princípio da dignidade humana. (...). O princípio da efetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (art. , III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público pauta-se exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas que integram a comunidade familiar. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o art. 227 da Constituição expressa essa concepção ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe, com absoluta prioridade, “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”, além de colocá-la “a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. Assim, depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão-somente no dever alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana.

No meu entender, os danos psicológicos são de tal monta que não podem ser aferidos quantitativamente, ao contrário dos danos materiais. Nesta inteligente decisão, como é possível observar, não há um mandamento sequer quanto à obrigação de fazer, de conotação subjetiva: não se determina que o pai deva amar o filho, dar-lhe atenção, ter com ele laços de afetividade. Nem poderia, já que somente o ser humano sabe até onde ir tratando-se de relações interpessoais. A determinação da Corte é no sentido da assunção de responsabilidade não assumida no tempo devido, uma vez que o filho representa uma bênção e também um ônus material e moral.

O abandono decorrente da desestrutura familiar pode gerar um conflito interno no menor, que resultará, no futuro, em desvios graves de comportamento, podendo até mesmo levá-lo ao crime.

Com efeito, condutas agressivas são comuns em crianças negligenciadas pelos pais, o que, no entanto, poderia ser evitado, por exemplo, com um simples passeio ao parque nos domingos ou uma viagem de férias.

Nesses casos, o ser pode pautar toda a existência no desprendimento, visando captar a simpatia e aprovação das pessoas à sua volta e, desse modo, passar a pertencer a algum grupo. Se assim é, a criança negligenciada urge por aprovação social e, para não cair nas armadilhas que a vida proporciona, necessita de apoio psicológico para fortalecer-se e resistir às tentações.

Em razão do enorme prejuízo causado na vida de quem se desenvolveu sem o apoio paterno é que, no meu entender, o ressarcimento não é mensurável. Evidentemente, não cabe falar aqui em vínculo afetivo forçado, mas sim no reconhecimento de que o normal é conviver, separar-se não é tão simples como se diz, sob a ótica dos filhos, e que estes sofrem quando os pais não lhes dão afeto.

A Constituição Federal estabelece o dever de sustento e também de preservação da saúde dos filhos, o que inclui o equilíbrio psicológico que se espera de uma pessoa que tenha estabilidade em suas relações afetivas.

Criança abandonada não é somente a que vive nas ruas, devendo esse rótulo ser extirpado para que os tribunais comecem a enxergar o tamanho do prejuízo causado pelo abandono afetivo.

Em sentido contrário, decidiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp nº 757.411-MG, da relatoria do Ministro Fernando Gonçalves, conforme se verá de excerto extraído do acórdão publicado no Diário da Justiça de 27 de março de 2006:

Escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, que nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.

É preciso concordar com o relator e dizer que, realmente, não há decisão capaz de fazer com que alguém sinta amor pelo outro. Não se trata de uma obrigação de fazer, ou pior, de sentir. Respeita-se, neste diapasão, a posição manifestada pelo e. Ministro. Decisão favorável à indenização, no entanto, abriria um precedente aos pais que geram e não cuidam; às crianças que se sentam horas no portão de casa à espera do pai que não chega num domingo; às crianças que não sabem o que é desenhar, pintar, montar presentes para entregar no Dia dos Pais.

Trata-se, a toda evidência, de crianças que precisam de acompanhamento psicológico, pois têm ciência de que nasceram de ambos os genitores, mas apenas um lhes ensina o sentido da família. Não perderam o pai, mas o pai preferiu se perder deles por vontade própria.

Se, de fato, todas as escolhas têm prós e contras, um pai ausente deveria suportar o ônus financeiro decorrente do seu livre-arbítrio, para que a Constituição Federal fosse respeitada na literalidade de seus princípios.

Se há formas de se atribuir responsabilidade ao pai que abandona seu filho, então que ele sinta o peso da mão da justiça dos homens sobre si, impondo-lhe o ressarcimento.

De alguma maneira, está-se colocando em discussão não uma decisão judicial ou mandamento constitucional, como se isso já não fosse suficiente, mas os direitos de crianças e adolescentes que um dia integrarão esses mesmos tribunais e, para julgar, valer-se-ão não só do conhecimento científico, mas também de sua experiência de vida para a construção de um mundo melhor. Ou não?

WALKYRIA CARVALHO NUNES COSTA é Advogada militante, Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora de Direito Penal do Instituto de Ensino Superior de Olinda/UNIP, da Faculdade Decisão (FADEC) e da Faculdade dos Guararapes (FG), todos em Pernambuco.

NOTA

[1] ANGELUCI, Cleber Antônio. http://www.ambito-jurídico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=930 captura: 20/01/08.

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